Na manhã de 9 de junho, após a prisão de ativistas a bordo de uma embarcação de porte médio descrita como Flotilha Liberdade, grupos que se descrevem como “pró-Palestina Livre”, realizaram uma manifestação contra Israel em frente à Federação Israelita do Rio Grande do Sul, entidade representativa da comunidade judaica gaúcha.
O episódio reacende um dos debates mais urgentes desde o 7 de outubro de 2023: a crítica à responsabilização coletiva de judeus, em Israel e na diáspora (individual ou coletivamente) pelas ações do Estado de Israel.
Mas do que falamos exatamente quando nos referimos à “responsabilização coletiva”? Trata-se da lógica em que cidadãos judeus e instituições judaicas, dentro ou fora de Israel, são cobrados, hostilizados ou violentados (material, física ou simbolicamente) por decisões reais ou presumidas do Estado israelense. Essa expectativa de lealdade e corresponsabilidade não é uma crítica legítima à política externa de Israel, mas sim um deslocamento de culpa que recai sobre indivíduos apenas por sua identidade judaica.
No manual Decoding Antisemitism, Karolina Placzynta explica que aplicar generalizações a indivíduos ou grupos com base em sua origem é um mecanismo cognitivo e discursivo central na produção de estereótipos — e, embora não exclusivo do antissemitismo, ganha contornos específicos nesse campo. Ela identifica dois elementos interligados que caracterizam esse tipo de discurso antissemita:
1. A fusão identitária entre judeus e israelenses. Atualmente, existem cerca de 15 milhões de judeus no mundo. Aproximadamente 8 milhões vivem em Israel, compondo a maioria da sociedade israelense, organizada sob um Estado que se define como judeu. No entanto, cerca de 7 milhões de judeus vivem fora de Israel, possuem outras nacionalidades e compartilham os dilemas políticos e culturais dos países em que nasceram e vivem. Reduzir toda essa diversidade à figura do “judeu israelense” é apagar a pluralidade da vida judaica e transformá-la numa identidade única e suspeita.
2. A corresponsabilidade coletiva. Essa lógica antecede a criação do Estado de Israel. Durante séculos, judeus foram culpabilizados pelo deicídio — a morte de Jesus —, acusação que se estendeu a gerações posteriores, como se todos compartilhassem uma culpa hereditária. Na modernidade, essa noção assume formas conspiratórias: os judeus seriam parte de uma mente coletiva que orquestra interesses globais. Essa crença esteve na base do Caso Dreyfus e da falsificação dos Protocolos dos Sábios de Sião. Mais tarde, foi central na ideologia racial do nazismo.
É digno de nota o cruzamento entre a ideia de dupla lealdade e a responsabilização coletiva que se articula na forma como antissemitismo se manifesta na contemporaneidade. Quem atribui a um judeu — ou a todos os judeus — a responsabilidade pelas ações do governo israelense o faz porque acredita que há, entre eles, uma fidelidade transnacional que suplanta qualquer outro vínculo cívico ou político. Essa, aliás, era a lógica que guiava as ações do Estado soviético, que em suas campanhas contra ‘o cosmopolitismo sem raízes’ e ‘o sionismo’, tinha os judeus como principais alvos, identificados como elementos suspeitos, portadores de uma lealdade dupla e cúmplices de interesses estrangeiros.
Mas pensemos um pouco mais a fundo: será que todos os judeus israelenses concordam com as ações de seus governantes? E se fosse no Brasil, ou qualquer outro país, em que parte dos cidadãos são situação ou oposição: é justo responsabilizar TODASas pessoas pelas atitudes e decisões de um governo?
Para situar essa reflexão dentro do debate racial, vale lembrar a contribuição de Tzvetan Todorov, em Nós e os Outros: A Reflexão Francesa sobre a Diversidade Humana (1993), quando afirma que o racismo não está apenas na hostilidade declarada, mas na crença de que o pertencimento a um determinado grupo define, de forma essencialista, características comportamentais, morais ou civilizatórias comuns a todos os seus membros. É justamente esse tipo de operação simbólica que a responsabilização coletiva dos judeus reproduz e atualiza.
Ao protestarem em frente a uma instituição judaica, responsabilizando judeus da diáspora pelas ações do governo israelense, recorre-se exatamente a uma lógica racializante: atribui-se a um grupo, com base em sua origem étnica ou religiosa, uma suposta unidade de pensamento, ação e intenção. Trata-se do mesmo mecanismo que, por exemplo, projeta suspeição generalizada sobre pessoas negras, como se todas compartilhassem um traço comum e ameaçador apenas por causa da cor da pele.
Lamentavelmente, essa não foi a primeira manifestação de caráter irrefutavelmente antissemita realizada por pretensos defensores dos direitos palestinos. Pouco depois do ataque terrorista do hamas em Israel, em 7 de outubro de 2023, a loja de uma mulher judia, na Bahia, Brasil, foi vandalizada. A autora dos fatos teria atacadoa lojista com acusações de que ela “estaria matando crianças em Gaza”.
Da mesma forma, ao longo dos quase dois anos de ofensivas defensivas israelenses em territórios dominados pelo grupo terrorista hamas em Gaza, visando recuperar reféns tomados em outubro de 2023, muitas foram as ações no Brasil e fora dele que tiveram como alvos apenas pessoas da comunidade judaica, nascidas em nosso país, e sem qualquer vinculação obrigatória ou necessária com as ações do governo de Israel.
A cada decisão dos governantes em Israel, mais pichações, vandalismos, cartazes e mensagens antissemitas apareciam em ruas de São Paulo, muros de Cemitérios Judaicos, fachadas de Sinagogasno nordeste, sudeste, sul do Brasil.
Enquanto pessoas nascidas no Brasil são atacadas por serem judias, mesmo que não tenham qualquer relação, ação ou omissão quanto aos atos do governo do Estado de Israel, uma guerra está em curso, comprometendo a dignidade de israelenses e palestinos, o direito a viver em paz, a liberdade a que supostamente faz referência a embarcação interceptada.
A “manifestação” pela liberdade da Palestina, realizada em frente a uma instituição representativa da comunidade judaica no sul do Brasil, serve apenas para perpetuar estereótipos antissemitas, racistas, associativos, dissociados da realidade, e para colocar em risco a vida de pessoas que apenas querem ter o direito a viver em paz, em Israel ou na diáspora, sem serem cobradas a responder e “pagar” por decisões e atos que não lhes tocam diretamente.