Artigo de Daniel Bialski e Raphael Kignel publicado no site Consultor Jurídico.
O dia 7 de outubro de 2023 será para sempre lembrado como aquele em que ocorreu um dos ataques terroristas mais abomináveis da história. E isso não só pelos atos de indescritível crueldade do grupo terrorista Hamas, que somaram mais de 1.200 (mil e duzentos) mortos em Israel em um único dia, mas por ter revivido o maior e mais incansável inimigo do povo judeu: o antissemitismo [1], cuja existência é tão longínqua quanto o próprio judaísmo. Ocorre que, diferentemente de tantos outros momentos [2], seja pelas abordagens constitucional [3], legal [4] ou jurisprudencial [5] de combate nacional ao racismo, o antissemitismo passou a assumir novas roupagens, como é o caso de algumas manifestações dissimuladas e intituladas como “antissionistas”.
Em breves considerações, o antissionismo, em sua concepção simplória seria um movimento crítico de resistência a determinadas políticas do Estado de Israel. Enquanto movimento político semelhante ao que se pode esperar em relação a qualquer outro país, se a manifestação não invocar o ódio, acusar de traição à pátria, destruição do país ou perseguição ao povo, estaria acobertado pela liberdade de expressão e pensamento (artigo 5º, IV, CF/88).
Por sua vez, antissemitismo é o termo utilizado para descrever o preconceito contra aqueles de origem semita, notadamente os judeus. Na linha da interpretação do Supremo Tribunal Federal, [6] por promover uma bandeira segregacionista com base em construções histórico-culturais, o antissemitismo é, indiscutivelmente, uma forma de racismo.
O problema surge no momento em que, por compartilharem um terreno comum — o Estado de Israel, ora visto como país atuante no cenário internacional, ora encarado como expressão da autodeterminação judaica —, não os raros discursos antissemitas pretendem passar ao largo da responsabilização criminal (artigo 20 da Lei nº 7.716/89) sob o manto do antissionismo.
Para trazer luz à questão, convém debruçarmo-nos brevemente sobre o que Luciana de Aboim Machado, Marcos Alves da Silva e Bruno Freire Moura chamam de “antissemitismo contemporâneo” [7]. Após o Holocausto, a criação da Organização das Nações Unidas e a nova tendência ocidental das Constituições rígidas [8], o antissemitismo não podia mais ser exercido como fora até então. Isto é, de forma abertamente racista e incorporado a políticas de Estado. Não, para que o ódio ao povo judeu pudesse continuar exercendo o seu papel milenar, era necessário fornecer-lhe roupagens mais sutis, difusas e, acima de tudo, desvinculadas dos estereótipos de perseguição já condenados pelo Direito Internacional. E foi assim que, aproveitando-se de movimentos antissionistas contrários a determinadas políticas israelenses, “não podendo atacar diretamente os judeus de carne e osso, os antissemitas voltaram suas armas para Israel, que é o judeu nacional” [9].
Nesse contexto, longe de pretender criminalizar a quem não está de acordo com a política israelense per se, o operador do Direito deve estar sensível ao conteúdo de manifestações antissemitas cuidadosamente tomadas, numa leitura desatenta, de ares meramente “antissionistas”. Ardilosamente se passou a substituir o “judeu” por “israelense” ou “sionista” tentando descaracterizar esse antissemitismo.
Para auxiliar o intérprete nessa intrincada tarefa, a International Holocaust Remembrance Alliance (IHRA), organização intergovernamental de combate ao antissemitismo, compilou diversas formas de “antissemitismo contemporâneo”, destacando que “as críticas a Israel, semelhantes às dirigidas contra qualquer outro país, não podem ser consideradas antissemíticas” [10].
A título exemplificativo, a IHRA reconhece como novas formas de antissemitismo “considerar os judeus coletivamente responsáveis pelas ações do Estado de Israel” ou, ainda, “negar ao povo judeu o seu direito à autodeterminação, por exemplo afirmando que a existência do Estado de Israel é um empreendimento racista”, bem como “acusar cidadãos judeus de serem mais leais a Israel, ou às alegadas prioridades dos judeus a nível mundial, do que aos interesses das suas próprias nações”.
No Direito Penal, práticas racistas lato sensu enquadram-se no artigo 20 da Lei nº 7.716/89, segundo o qual considera-se crime “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”.
De acordo com uma interpretação material do tipo, seja o povo judeu “raça” [11] ou “religião”, a mera substituição da palavra “judeu” por “israelense” jamais poderá isentar o agente da responsabilização penal. Da mesma forma, atacar Israel enquanto expressão da autodeterminação judia no lugar do semita “de carne e osso” jamais poderá servir para driblar a incidência do tipo penal. Os tempos mudaram e, com isso, a forma com que o antissemitismo é praticado também. Portanto, cabe às autoridades competentes – o Poder Judiciário, o Ministério Público e as polícias — atentarem-se para as novas formas de racismo, impedindo que movimentos políticos sejam aproveitados para a proliferação de discursos de ódio e dessa crescente intolerância.
_________________________________
[1] Cf. https://canalcienciascriminais.com.br/antissemitismo-aumenta-no-brasil/. Somente no Brasil, estipula-se que, desde o dia 7 de outubro de 2023, o antissemitismo aumentou 1.200% (mil e duzentos por cento), a maior escalada dos últimos anos. Mas enganam-se aqueles que pensam ser o antissemitismo no Brasil uma novidade. Ainda antes de eclodir a Segunda Guerra Mundial, durante a Era Vargas, muitos judeus fugitivos das políticas antissemitas europeias foram proibidos de ingressar no país (cf., por exemplo, https://www.bbc.com/portuguese/brasil-46899583).
[2] Dos quais a Inquisição e o Holocausto são notórios exemplos.
[3] Constituição Federal de 1988. “Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: (…) VIII – repúdio ao terrorismo e ao racismo”; e “Art. 5º Todos são iguais perante a lei (…): (…) XLII – a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”. Disponível em : https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.
[4] Lei nº 7.716/89. “Art. 1º Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7716.htm.
[5] No Habeas Corpus nº 82.424/RS, popularmente conhecido como Caso Ellwanger, o Supremo Tribunal Federal reconheceu constituírem os judeus uma “raça”, tendo em vista ser o termo uma construção político-social (e não biológica): “a divisão dos seres humanos em raças resulta de um processo de conteúdo meramente político-social. Desse pressuposto origina-se o racismo que, por sua vez, gera a discriminação e o preconceito segregacionista” (STF, HC nº 82.424/RS, Tribunal Pleno, Rel. Min. Moreira Alves, j. 17/09/2003, DJe 19/03/2004). Defendendo, sob o prisma da legalidade estrita, constituir o termo “raça” natureza meramente antropológica, cf. SANTOS, Christiano Jorge. Crimes de preconceito e de discriminação. 2ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 52 e ss.
[6] Na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão nº 26/DF, a Suprema Corte reafirmou que “o conceito de racismo, compreendido em sua dimensão social, projeta-se para além de aspectos estritamente biológicos ou fenotípicos, pois resulta, enquanto manifestação de poder, de uma construção de índole histórico-cultural motivada pelo objetivo de justificar a desigualdade e destinada ao controle ideológico” (STF, ADO nº 26/DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, j. 13/06/2019, DJe, 06/10/2020).
[7] MACHADO, Luciana de Aboim. SILVA, Marcos Alves da. MOURA, Bruno Freire. Antissionismo E Direitos Humanos: Uma Análise Acerca Da Face Político-Ideológica Do Antissemitismo Contemporâneo. Administração de Empresas em Revista, v. 4, nº 26, 2021, e-ISSN: 2316-7548. Disponível em: https://revista.unicuritiba.edu.br/index.php/admrevista/article/view/6312.
[8] “Foi propriamente por causa dessas trágicas experiências que se produziu na Europa, logo após a Segunda Guerra Mundial, uma mudança de paradigma, tanto do direito quanto da democracia, por intermédio da constitucionalização daquele e desta. Essa mudança constitui na sujeição da inteira produção do direito, incluída a legislação, a normas constitucionais rigidamente sobrepostas a todos os poderes normativos e, portanto, em um completamento do modelo paleopositivista do Estado de Direito” (FERRAJOLI, Luigi. Poderes selvagens: a crise da democracia italiana. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 20).
[9] MACHADO, Luciana de Aboim. SILVA, Marcos Alves da. MOURA, Bruno Freire. Antissionismo E Direitos Humanos: Uma Análise Acerca Da Face Político-Ideológica Do Antissemitismo Contemporâneo, p. 11.
[10] Cf. https://www.holocaustremembrance.com/pt-pt/resources/working-definitions-charters/definicao-pratica-de-antissemitismo-da-ihra.
[11] Cf. https://www.conjur.com.br/2023-dez-08/injuria-antissemita-e-racial-ou-religiosa/.